· Nathalia Passarinho - @npassarinho· Da BBC News Brasil em Londres
CRÉDITO,REUTERS/AMANDA PEROBELLI
Legenda da foto,
Médicos de centros de referência como
hospital das Clínicas, Albert Einstein e Emilio Ribas explicam que efeitos
colaterais de medicamentos sem eficácia estão prejudicando o tratamento de
doentes graves
Defendido pelo presidente Jair
Bolsonaro como estratégia de combate ao coronavírus, o chamado "kit
covid" ou "tratamento precoce", na verdade, contribui para
aumentar o número de mortes de pacientes graves, disseram à BBC News Brasil
diretores de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência.
Mais de um ano depois de a pandemia
chegar ao Brasil, Bolsonaro continua defendendo a prescrição de medicamentos
como hidroxicloroquina e ivermectina, embora diversas pesquisas científicas
apontem que esses remédios não têm eficácia no tratamento de covid-19.
"Muitos têm sido salvos no
Brasil com esse atendimento imediato. Neste prédio mesmo (Palácio do Planalto),
mais de 200 pessoas contraíram a Covid e quase todas, pelo que eu tenha
conhecimento, inclusive eu, buscaram esse tratamento imediato com uma cesta de
produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Azitromicina", disse o
presidente no início do mês.
Mas evidências científicas apontam
que esses remédios não têm efeito de prevenção ou tratamento precoce de covid.
E médicos de hospitais de referência ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a
defesa e o uso do "kit covid" contribuem de diferentes maneiras para
aumentar as mortes no país.
O médico intensivista Ederlon
Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São
Paulo, destaca que entre 80% e 85% das pessoas não vão desenvolver forma grave
de covid-19. Para esses pacientes, usar o "kit covid" não vai ajudar
em nada. Também pode não prejudicar, se a pessoa não tomar doses excessivas,
não desenvolver efeitos colaterais, nem tiver doenças que possam se agravar com
esses medicamentos.
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80% dos intubados por covid-19 morreram no Brasil em 2020
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Mas, para 15% ou 20% que precisam de
internação, essas drogas, segundo ele, podem prejudicar o tratamento no
hospital e contribuir para a morte de pacientes.
CRÉDITO,REUTERS
Legenda da foto,
Governo bolsonaro investiu R$ 90 milhões
em remédios sem eficácia comprovada contra covid-19
"A preocupação maior é com os
15% que desenvolvem forma grave da doença e acabam vindo para a UTI. É nesses
pacientes que os efeitos adversos dessas drogas ocorrem com mais frequência e
esses efeitos podem, sim, ter impacto na sobrevida", diz Rezende, que é
ex-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira.
E o "Kit covid" também mata
de maneira indireta, ao retardar a procura de atendimento pela população,
absorver dinheiro público que poderia ir para a compra de medicamentos para
intubação, e ao dominar a mensagem de combate à pandemia, enquanto protocolos
nacionais de atendimento sequer foram adotados, disseram médicos intensivistas
do Hospital das Clínicas, Albert Einstein e Emilio Ribas.
"Alguns prefeitos distribuíram
saquinho com o 'kit covid'. As pessoas mais crédulas achavam que tomando aquilo
não iam pegar covid nunca e demoravam para procurar assistência quando ficavam
doentes", diz Carlos Carvalho, diretor da Divisão de Pneumologia do
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Entre os efeitos da procura tardia
por atendimento está a intubação, quando o pulmão já está muito lesionado pelo
esforço para respirar. Pacientes que recebem máscara de oxigênio ou ventilação
mecânica invasiva antes de chegar à insuficiência respiratória aguda têm mais
chances de sobreviver, explicam os médicos intensivistas.
"A falta de organização central
e as informações desconexas sobre medicação sem eficácia contribuíram para a
letalidade maior na nossa população. Não vou dizer que representa 1% ou 99%
(das mortes), mas contribuiu", completa Carlos Carvalho, que também é
professor da Faculdade de Medicina da USP.
Efeitos colaterais
em pacientes graves
A pneumologista Carmen Valente
Barbas, que atua no Hospital das Clínicas e no Albert Einstein, em São Paulo,
diz que a maioria das pessoas que ela atende atualmente dizem, na consulta, que
tomaram medicamentos do chamado kit covid.
"A maior parte está tomando
essas medicações. Em toda videoconsulta que eu faço, as pessoas dizem que estão
tomando e tomando em doses cavalares", disse à BBC News Brasil.
A maior preocupação dos médicos
intensivistas é o efeito colateral desses medicamentos em pacientes que evoluem
para a forma grave da covid e que já estão com o funcionamento de órgãos vitais
comprometidos.
"Esses remédios não ajudam, não
impedem o quadro de intubação, e trazem efeitos colaterais, como hepatite,
problema renal, mais infecções bacterianas, diarreia, gastrite. E a interação
entre esses medicamentos pode ser perigosa", completa Barbas, que é
professora de medicina da USP e referência internacional em ventilação
mecânica.
Entre os medicamentos mais defendidos
por Bolsonaro para uso por pacientes com covid estão a hidroxicloroquina, a
azitromicina e a ivermectina.
A hidroxicloroquina é um medicamento
normalmente usado em pacientes com lúpus, artrite reumatoide, doenças fotossensíveis
e malária. A ivermectina é um vermífugo usado para combater vermes, piolhos e
carrapatos.
Já azitromicina é um antibiótico que,
segundo os médicos, só deveria ser usado em caso de infecção bacteriana, não
para previnir um vírus.
Arritmia, delírios
e problema renal
O médico intensivista Ederlon Rezende
chama a atenção para o risco da hidroxicloroquina causar arritmia cardíaca, um
dos efeitos colaterais possíveis do remédio.
Num paciente que evolui para quadro
grave de covid, esse pode ser uma efeito adverso crítico, porque a doença
causada pelo coronavírus também afeta o coração, ao promover inflamações do
músculo cardíaco e trombose nos vasos e tecidos.
Rezende diz ainda que tem tido
problemas com pacientes que precisam ser sedados para intubação e que acordam
da sedação com confusão mental mais acentuada por causa do uso abusivo de
ivermectina antes de chegar ao hospital.
"O paciente, ao acordar da
intubação, pode apresentar delírio. Com pacientes com covid isso é muito
frequente, porque o vírus atravessa a barreira hematocefálica e afeta o
cérebro, principalmente a região frontal, causando inflamação", diz.
"A invermectina é uma droga que
também penetra no cérebro quando ele está inflamado, e ela deprime mais ainda o
cérebro e piora a qualidade do despertar de um paciente intubado. Essa tem sido
uma intercorrência frequente nos pacientes que usaram esse remédio antes chegar
à UTI".
A ivermectina, diz ele, também pode provocar lesão renal, outro componente que dificulta a cura de um paciente grave de covid, já que a doença tem potencial para provocar complicações nos rins e demandar hemodiálise.
CRÉDITO,REUTERS/AMANDA PEROBELLI
Legenda da foto,
Brasil vive pico de infecções e tem
mais mortes diárias que toda a União Europeia e também América do Norte,
segundo dados do Our World in Data
"Em termos de risco de morte, eu
daria destaque para a cloroquina e hidroxocloroquina, com potencial para
provocar arritmias fatais. E invermectina, como já comentei, com potencial de
depressão do sistema nervoso central, lesão hepática, lesão renal, entre
outros."
Mais recentemente, Bolsonaro passou a
citar a Nitazoxanide, conhecida como Annita, como candidata a integrar o kit
covid. O problema, além de não haver qualquer evidência científica de eficácia,
é que as pessoas passaram a tomar esse vermífugo junto com outro, a
ivermectina, intoxicando o organismo, diz médica do Albert Einstein Cármen
Valente Barbas.
"A interação desses
medicamentos, tomados juntos, é perigosa. As pessoas estão tomando Annita junto
com ivermectina e isso é um absurdo."
Infecções mais
resistentes, aumentando risco de morte
Outro problema foi a inclusão recente,
no "kit covid", de corticoides. De fato, pesquisas mostram que
corticoides ajudam a reduzir a mortalidade entre pacientes graves, que precisam
de ventilação mecânica por máscaras ou intubação.
Mas, no restante da população, o uso
pode provocar problemas sérios.
"Para o paciente pouco
sintomático ou assintomático, o corticoide pode até baixar a imunidade e
propiciar outras doenças. E, muitas vezes, eles (autoridades locais) davam esse
corticoide junto com antibiótico", diz Carlos Carvalho, diretor da Divisão
de Pneumologia Hospital das Clínicas.
"Se, por azar, o doente piorar e
tiver uma infecção, ele vai ter uma infecção mais grave por estar tomando
remédio imunossupressor (coirticoide), e vai ter uma bactéria resistente ao
antibiótico que ele queimou, usando inadequadamente."
O supervisor da UTI do Hospital
Emilio Ribas, Jaques Sztajnbok, também diz que o uso "preventivo" de
azitromicina e corticoide, como defendido pelos que advogam pelo "kit
covid", causa mais mortalidade do que protege.
"Se você dá corticoide a
paciente de covid sem necessidade, ele vai ter um desempenho pior. Ele morrerá
mais do que se tivesse sido adequadamente tratado", disse à BBC News
Brasil.
"Falsa
segurança" leva à demora na busca por atendimento
Entre as contribuições
"indiretas" do kit covid para as mortes no Brasil está, segundo os
médicos intensivistas, a "falsa segurança" que esses medicamentos
produzem, retardando a procura por atendimento médico.
Um problema recorrente nas UTIs
brasileiras, dizem eles, é a chegada de pacientes em estado grave que, por se
sentirem protegidos por hidroxicloroquina e afins, procuraram ajuda médica
quando era tarde demais.
CRÉDITO,REUTERS/AMANDA PEROBELLI
Legenda da foto,
Médicos alertam que muitos pacientes
sente uma procuram atendimento tarde demais, quando pulmão já está danificado
Entre os riscos de se procurar ajuda
muito tarde está lesionar o pulmão a ponto de o problema não poder ser
revertido com ventilação mecânica e intubação.
"Quanto maior o tempo decorrido
entre a necessidade de terapia intensiva e a efetiva admissão ao leito de
hospital, maior a mortalidade", destaca Jaques Sztajnbok, que chefia a UTI
do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.
A pneumologista Carmen Valente
Barbas, que coordena equipes no Albert Einstein e Hospital das Clínicas, diz
que a insuficiência respiratória aguda pode evoluir rapidamente para a morte.
"As pessoas estão ficando com
falta de ar em casa ou alugando oxigênio em casa. O quadro pode se agravar
muito rapidamente e ela pode morrer em casa, sem ter tempo de chegar ao
hospital".
Foco em cloroquina
tira recursos de tratamentos comprovados
Talvez a maior causa de morte causada
pelo enfoque do governo federal em defender remédios não eficazes seja o gasto
de dinheiro e tempo que poderiam ser usados na compra de equipamentos, vacinas
e na produção de um protocolo nacional com orientações para o atendimento de
pacientes graves com covid.
Diferentemente do que ocorreu em
países europeus e nos Estados Unidos, passado um ano da pandemia, o Ministério
da Saúde não produziu um documento com informações para os profissionais de
saúde seguirem.
"Perdeu-se tempo discutindo
tratamento precoce sem qualquer evidência científica e não se investiu em
disseminar informação sobre tratamentos eficazes para pacientes graves,
técnicas de identificação de insuficiência respiratória, uso da posição prona e
outros", avalia o pesquisador da Fiocruz Fernando Bozza, autor de uma
pesquisa que revelou que 80% dos pacientes intubados no Brasil em 2020
morreram.
Além disso, recursos que poderia ter
sido usados para medicamentos necessários para intubação ou para criar leitos
de UTIs foram gastos na compra de cloroquina e outros itens do chamado
"tratamento precoce", sem comprovação científica .
Levantamento da BBC News Brasil
mostrou que os gastos do governo Bolsonaro com cloroquina, hidroxicloroquina,
Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida somaram
quase R$ 90 milhões até janeiro deste ano. Enquanto isso, médicos e
associações farmacêuticas alertam que o estoque de medicamentos necessários
para intubação está perto de acabar.
A pneumologista Carmen Valente Barbas
avalia que vidas poderiam ter sido salvas se os recursos fossem aplicados em
soluções cientificamente comprovadas.
"É gasto que podia estar sendo
usado, também, para comprar vacina", lamenta.
"As fake news e toda a
disseminação de desinformação sobre tratamentos sem eficácia têm esse duplo
caráter: leva informações falsas para a população e tira a oportunidade de as
melhores práticas serem difundidas. Perdemos a oportunidade de investir e implementar
políticas baseadas em evidências científicas que poderiam salvar vidas",
completa o médico infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz.
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